Texto de Eugénia Vasques escrito para o programa

O JARDIM DAS DELÍCIAS
Sobre o espectáculo Nocturno Delirante
Construído a partir de textos de Maupassant e outros autores

1.

A Companhia Cão Solteiro existe em Lisboa, como lugar de criação, desde 1997. Mas este “lugar” (e não sítio pois a Companhia não possui espaço próprio) tem um programa e visa a construção de uma identidade no âmbito do teatro português contemporâneo.

O programa que desde o início Cão Solteiro defende comporta uma concreta ideia de texto – semiologicamente determinada – que, na tradição de uma modernidade com sede no século XIX (pelo menos), não se confunde com “texto dramático” (pertença convencional da literatura) mas se procura num sistema multicodificado no qual a representação põe em cena, através de técnicas próprias, enunciados icónicos, gestuais e verbais. Neste teatro, as personagens e os seus corpos (aos quais os actores/intérpretes emprestam, tradicionalmente a sua fisicalidade/emoção) já não pertencem ao absoluto do texto dramático, que os gera e determina (Stanislavski, etc.), mas são eles-mesmos, as personagens e os seus corpos, as entidades que produzem e enunciam o texto teatral próprio da contemporaneidade (seja ele ou não, na base, um texto dramático).

A este processo – pois de “processo” realmente se trata – se chama, comummente, escrita de teatro ou escrita teatral, e é com base nesta ideia de escrita que Cão Solteiro – isto é, o conjunto de artistas, intérpretes e criadores responsáveis pelas propostas (a que não podemos, já, chamar “criação colectiva” ainda que a criação seja partilhada, discutida, estudada, debatida, guerreada) – inventa e constrói os seus objectivos teatrais.

2.

Compreende-se melhor que os “textos” escolhidos, desde 1997, por Cão Solteiro (uma equipa que, se bem se entender, tem muitas das suas raízes referenciais mergulhadas profundamente na tradição e na prática da pintura) sejam de procedência e género variados, poéticos (Ruy Belo, Lispector, Hélder, Velho da Costa, Perec, Baudelaire), não excluindo os textos dramáticos (Beckett, Shawn, Pinter, Tchecov) que, entendidos como materiais plásticos, são sujeitos a operações de “tridimencionalização” (desmontagem, fragmentação, colagem, narrativização), intervenções da dramaturgia teatral que caracteriza, em geral, o modus faciendi desta Companhia inteiramente vocacionada para o repensar e o refazer do teatro em moldes de valorização da “nobreza” dos intervenientes e da “nobilitação” das suas matérias primas (“ papel e madeira, guache e voz, personagem e tecido, lâmpada e grande linha diagonal que atravessa o espaço, presença crua do actor em cena”).

“Textos” gráficos ou de teorização artística, textos de fotógrafos e sobre fotografia, textos de pintores ou sobre pintura e os universos dos artistas (Picasso, Khalo, Van Gogh, Sophie Calle, Ian Fabre, Sarah Moon, Gaugin, Matisse, Bill Viola e J. Beuys) são outras das fontes usadas por Cão Solteiro para a construção dos seus objectivos teatrais : poéticos, oníricos, sujestivos, polissémicos e “estranhos”.

3.

Nocturno Delirante, um espectáculo sensorial sobre o medo do desconhecido e da morte e sobre o valor amoroso da memória, é, depois do bem amado Aguantar (1999), outra das criações magnas deste colectivo a ilustrar bem o que venho afirmando.

Construído sobre uma pauta textual em que domina a “literatura do fantástico”, desde o século XVIII estrangeiro à actualidade portuguesa (Cazotte, Hoffmann, Villiers de L’Isle-Adam, Rimbaud, Nietzsche, Sternberg,Álvaro de Carvalhal, mas sobretudo Maupassant), a sua desconfiança das narrativas lineares cria uma “ordem”, isto é, uma “escrita” – ao contrário das lógicas dos textos originais – baseada no fluir, no movimento itinerante, na reprodução especular, na fragmentação sistemática dos pontos de vista, enfim, numa estética da sugestão e da criação dos sentidos (livremente) comandada pela sinestesia e por um voyeurismo disfórico, de dimensão ontológica mas não moralizante, que o Jardim circular da Casa D’Os Dias da Água, transmutado em locus horrendus, metáfora da nossa passagem breve pela vida, enquadra e potencia.

A escrita cénica de Nuno Carinhas, fundada na estilização depurada de um barroquismo precioso (veja-se o uso dos espelhos, das flores artificiais e da apropriação da Natureza, das cores, das luzes, da bailarina, da água da pedra e dos materiais naturais “domesticados”), a escrita formal dos figurinos, geométrica e desnaturalizante (Mariana Sá Nogueira), os desempenhos estilizados dos intérpretes (Paula Sá Nogueira, Marcello Urgeghe, Gonçalo Amorim, André Teodósio e Manuela Correia, as duas faces alegorizantes da Morte Sedutora), em confronto com o verbo “decadente” e mórbido, com uma música própria (Mário Franco), cria a dissonância de que precisamos para o delírio, cauteloso e adestrado, com que nos debatemos com imagens do passamento, da paixão e da loucura.

4.

Nocturno Delirante tem um compère alegórico: o cão Níger, que a linha dramatúrgica recolheu de A Vestal, conto de Álvaro do Carvalhal, autor de Os Canibais. É este mestre de festas outra das figuras barroquizantes que povoam a noite do espectáculo. Mas é também a existência autónoma, desta “figura de ligação” (no sentido próprio e figurado) que nos indica o modo como a escrita se processa no estaleiro artesanal do Cão Solteiro.

5.

Considero este espectáculo um documento íntimo, povoado de dores e memórias. Sobre esta intuição não escrevo. Mas dedico este meu texto a Manuel João Gomes, tradutor de tantos destes textos insólitos, e à matéria impalpável, fulgurante e por vezes sulfurosa, angustiada, que os actores destilam neste trabalho de catarse e sublimação artística. O anjo, os anjos, na verdade, passaram por ali.